Xixi na meada
Um leitor me perguntou qual é a origem da expressão ‘fio da miada’, se teria alguma relação com gato. Eh, eh... Essa eu não conhecia. Provavelmente, ele esteja se referindo ao ‘fio da meada’. Eu sei que gato gosta de brincar com um novelo, mas, nessa, o bichano fica de fora.
‘Fio da meada’ é parte da expressão ou, melhor, das expressões. Por completo, nos dicionários, temos registradas duas: ‘perder o fio da meada’ (perder a continuidade de uma ideia ou de um relato) e ‘achar o fio da meada’ (descobrir a maneira de esclarecer o que está confuso). Em Portugal, se usa dizer ‘à meada’ em vez de ‘da meada’.
Eis que a terra de ninguém chamada internet nos oferece uma explicação pseudoetimológica: “A expressão ‘fio da meada’ surgiu na Revolução Industrial. As máquinas tinham um suporte para o rolo de fios (meada). A responsabilidade do operário era a de pegar a ponta do fio e colocar na posição que a máquina começava a puxar o rolo e fabricar o tecido. Acontece que os rolos passavam um a um a uma velocidade considerável e às vezes o operário perdia o ‘fio da meada’ por falta de concentração, cansaço ou por ficar fazendo mexericos com seus companheiros”.
A historieta não é tão ilógica, mas a ideia de meada representar um pensamento, um encadeamento de ideias, é anterior a 1760, quando se iniciou a Revolução Industrial. Afinal, as meadas existem muito antes disso, na fabricação têxtil pré-industrial.
Em seu ‘Vocabulario Latino & Portuguez’, de 1716, o lexicógrafo português Raphael Bluteau explica que meada é feita por fios de linho, lã, algodão ou seda que ficam em círculos, sobrepostos uns aos outros, para não se embaraçarem. (É como se vê ali na figura – uma meada no sarilho, pronta para virar novelo.) A seguir, num sentido figurado, o autor traz meada como sinônimo de enredo (uma sucessão de acontecimentos).
Nesse sentido, há séculos temos várias analogias entre o têxtil e o discurso. Texto vem do latim ‘textus’ que significa ‘tecido’. É um primo etimológico de ‘têxtil’. Trama é um conjunto de fios que se cruzam, mas também é o enredo de uma história. Quem explica bem, desenrola; quem não consegue falar direito, é enrolado (como um fio). Isso sem contar a ‘linha de raciocínio’.
Quando se está fiando (fabricando o fio), perder a ponta do fio da meada é certamente interromper o trabalho da fiação. Por qualquer descuido, a ponta se esconde por entre as voltas do fio e, para achá-la d enovo, é pior que procurar a ponta do durex. No sentido figurado, deixar escapar o fio da meada, então, virou perder o encadeamento das ideias, a sequência do enredo.
Tá, mas e de onde vem a palavra ‘meada’? É aí que está o mais intrigante disso tudo. No jornal ‘Mercurio de España’, de 1826, ensina-se o processo de branqueamento da lã. Falam lá que as lãs devem ser deixadas de 15 a 20 minutos em água misturada com um quarto de urina velha, esquentando-a a 60° C.
Sim, meus amigos, xixi.
Desde a Roma Antiga se sabe que urina tem um poder alvejante. É que a amônia ali presente reagindo com o ar consegue clarear lãs e outros tecidos. Assim, antes da venda, a lã era frequentemente tratada com mijo.
Mijo: palavra feia, né? Pode até ser, mas ela não é de hoje. O termo vem do verbo mijar, que no português arcaico era ‘mejar’, derivado do latim vulgar ‘meiare’. Essa palavra latina ficou em espanhol como ‘mear’, com o mesmo sentido. Assim, uma ‘meada’, em espanhol, significa literalmente ‘mijada’.
Em 1863, no seu ‘Diccionario Gallego-Castellano’, o espanhol Francisco Javier Rodriguez propõe que “como a urina contribui para o branqueamento dos novelos” é daí que vem sua etimologia. Quem diria, hein?
Bom, espero que eu não tenha me embolado para lhe explicar isso tudo e que você tenha chegado até aqui sem perder o fio da mijada, digo, da miada, ops... da meada.
Referência: ‘Diccionario gallego-castellano’, por Marcial Valladares Núñez e Marcial Valladares (1884).